Sobre viagens, vinis e meu avô

Matheus
6 min readJul 27, 2020

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Era algum dia quente e úmido de julho. Último dia em Los Angeles. Passei duas semanas lá nas férias de verão e foi uma das melhores que já tive. O tempo pode passar mas eu nunca vou esquecer a brisa do oceano pacífico direto de Venice Beach, as hot wings extremamente apimentadas do supermercado perto do nosso hotel e a energia vibrante que aquela cidade exala. Sinto saudades de lá e quero poder voltar um dia.

Para voltarmos para Brasília, saímos de Los Angeles, fizemos uma escala no Panamá e de lá chegamos em casa. Não só foi uma viagem longa mas além disso uma tempestada tomou de conta da Cidade do Panamá. Sei lá se houve interferência divina, mas eu duvido muito que o piloto conseguiu pousar o avião lá sem um empurrãozinho de alguma divindade. Estávamos esgotados mas igualmente felizes de poder chegar em casa. Tão bom quanto ir viajar é poder deitar na própria cama no retorno.

Assim que saí do avião aqui na capital federal eu recebi uma mensagem da minha madrinha. Ela só me pedia para que meu pai ligasse a ela quando chegássemos em casa. Algo meio inusitado, mas imaginei que era uma trivialidade qualquer. Talvez o motor do carro dela devia ter dado problema ou coisa do tipo. Dei o recado e ele o fez quando chegamos em casa. Eu estava no meu quarto quando eu ouvi minha mãe dar um grito e cair no choro. No meio daquilo tudo eu entendi o que aconteceu quando fui acudí-la: meu avô paterno tinha morrido no mesmo dia em que retornamos pra Brasília. Minha reação imediata foi perder as forças das pernas e cair no chão. Era impossível, não podia ser. Mas era verdade. E voltei das melhores férias possíveis pro pior dia da minha vida num piscar de olhos.

Eu senti as horas seguintes como se fossem segundos. Era como se alguém muito forte me desse uma surra e meu corpo estivesse se recuperando do trauma por meio de uma anestesia muito forte. Eu me lembro de pouquíssima coisa. Ir no apartamento da minha avó encontrar a família, tentar comer alguma coisa por lá e passar a noite em claro. Completamente apático e travado, segurando algo parecido como desespero dentro de mim mas não soltando nada porque não queria tornar nada pior. A minha mãe estava em frangalhos e meu pai tentando confortá-la da forma que conseguia. Não adiantava muito eu colapsar também, né?

Na manhã seguinte eu acordei com um susto. Minha mãe mandando me botar uma roupa qualquer porque eu tinha que ir pro cemitério enterrar meu avô e estávamos atrasados. Eu estava mais confuso do que tudo porque não fazia ideia do que vestir ou do que fazer. Ia ser a primeira vez em que eu ia para um enterro, eu não tinha ideia de como funcionava e eu não esperava que as circunstâncias levassem ao que eu estava prestes a viver um de uma forma tão repentina. Mas, então, fomos. Não tinha como fugir.

Eu e meu pai fomos os primeiros a chegar na capela. Ele tinha acabado de chegar. Usava uma camisa social branca e parecia estar em sono profundo, em paz. Ver ele ali daquela forma foi o que me fez cair a ficha. Ele morreu. Estava ali na minha frente mas já estava longe de tudo e todos. Talvez foi o choque que me impediu de chorar porque, apesar de abatido e destruído por dentro, eu não deixei uma lágrima sequer cair. Assim como na noite anterior, só tenho flashes esparsos do que aconteceu. Não me lembro muito bem quem estava lá, nem de quanto tempo levou. Mas aconteceu uma coisa na qual eu me lembro muito bem.

Quando o caixão estava prestes a ser posto dentro da cova, eu comecei a ouvir um coro tal como um “na na na na” na minha cabeça. Não sei o que diabos o meu subconsciente estava colocando ali no momento, mas ouvi com clareza essa melodia enquanto ficava gravado na memória a visão do meu avô descendo no ventre da terra. Horas depois, já em casa, eu estava no meu quarto. Esgotado e ainda sem reação pra muita coisa, eu liguei o meu computador e fui ouvir música. Precisava de alguma coisa que me trouxesse qualquer alento à situação toda. Abri o play e joguei no aleatório. E saiu essa música aqui. Na parte final dela, o “na na na na” muito parecido que eu ouvi no cemitério. Liguei uma coisa com a outra e eu chorei tudo o que estava acumulado em 24 horas.

Lembrar desse evento me faz lembrar várias coisas. Me recordo de alguns episódios particulares que vivi com meu avô. Como da vez em que ele tirou uma aranha marrom do box do banheiro onde eu ia me banhar, na casa da minha avó, ainda criança. Da vez em que ele, já diabético, foi comprar uma rapadura sozinho, sem avisar ninguém, e me fez seu confidente da aventura. Da vez em que ele foi na minha formatura do ensino médio e ele fez minha avó comprar uma camisa polo nova porque ele queria estar bonito pra ocasião. Das vezes em que via ele sofrer torcendo pelo Botafogo, o time que tanto amava. Ou de quando eu via ele quieto, num canto qualquer, lendo jornal ou vendo televisão. Eu me vejo muito nele, por saber que ele, mesmo sendo calado, sentia tanto as coisas. Conversava pouco, mas quando abria a boca sempre dizia algo significativo. Isso tudo me faz sorrir por dentro e por fora. O enterro também me faz sentir uma profunda angústia quando me dou conta que não me lembro da última vez em que estivemos juntos. Do que fizemos ou onde estávamos. Então eu tenho que me voltar pos momentos mais antigos. É um desserviço à memória do meu avô, mas talvez meu cérebro me privou disso como mecanismo de defesa e ainda não destravei o nó que ele fez. Mas, talvez, o sentimento mais forte quando me deparo com essas memórias é o agradecimento de uma música do John Frusciante ter sido o afago que eu precisava naquele momento tão difícil. Coincidência o aleatório ter jogado uma música que tinha aqueles “na na na na” todos? Talvez. Ou vai ver era meu avô numa trama maior para me dar um último adeus. Eu nunca vou entender, e acho que nem quero. Mas gosto de pensar que esse foi um episódo em que, mais uma vez, a música salvou a minha vida e esteve lá quando mais precisei de algo ou alguém.

Música é algo importante pra mim. Não precisa ser nenhum gênio pra saber disso. Foi isso que me motivou a começar a colecionar CDs quando adolescente e vinis agora adulto. Eu tenho uma coisa com ter coisas na forma física para apreciar. Tocar, cheirar, manusear. Eu consigo apreciar melhor a obra que está ali na minha frente. Mas além disso, é para ter um registro tátil de músicas que são marcantes na minha vida, por qualquer motivo que seja. Pegar um álbum marcante para mim ou que tenha uma música incrível, tirar da capa, colocar no toca discos, apertar o play e ver a mágica da física transformar o acetato do vinil em música pelas caixas de som me dá um prazer indescritível. Isso faz com que eu busque as memórias mais profundas, sagradas e imaculadas.

Desde que comecei minha coleção sempre dei uma prioridade aos discos que são mais importantes. O DC EP, o compacto que tem aquela música que lembra o meu avô, tá no topo das prioridades. Porém é caro para cacete e só importando para ter um em minhas mãos. Mas sei que um dia ainda o terei. Sinto que quando o colocar para tocar e cair nessa música, o meu avô estará mais vivo do que nunca em mim. Assim como eu ainda o percebo num abraço quando A Corner cai em um aleatório qualquer.

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Matheus

Desde 1995 falando coisas que só fazem sentido na minha cabeça. Quando tem palavras demais dentro dela, reorganizo elas na minha prosa. Às vezes dá certo.