Mosquito vermelho

Matheus
4 min readNov 11, 2020

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Você estava linda quando te vi pela primeira vez no auditório da universidade. Jaqueta jeans, os cachos soltos, uma discussão acalorada sobre Star Wars. Mal podia imaginar, mas meu subconsciente meio que já te escolhera. A aproximação foi lenta, quase morosa, mas aconteceu em algum momento. Éramos dois jovens adultos tímidos, mas ávidos com a possibilidade da paixão, principalmente da reciprocidade. Eventualmente aconteceu. Um encontro ali, um beijinho na saída do metrô, mãos dadas no corredor da universidade. O pedido de namoro na frente da empresa júnior do nosso curso.

Era bom demais pra ser verdade. Namorar de novo não era minha prioridade daquele momento da minha vida, mas a oportunidade que estava ali na frente dos meus olhos era boa demais para não se aproveitar. Tinha ao meu lado uma companheira divertida, que partilhava de muitos dos meus gostos, era doce, gentil e tinha um sorriso muito lindo. O que poderia dar errado?

Bom, muita coisa.

Talvez tenha sido o frenesi do momento e a cegueira da paixão, mas eu não pude te conhecer mais a fundo antes de chegarmos a namorar. A gente só sabia que gostávamos um do outro e nos parecia suficiente. Iriamos aprendendo o restante com o tempo e a convivência. Um tempo depois, fui juntando os pontos e entendendo como a sua história de vida te tornou em uma pessoa muito desconfiada, ansiosa e amedrontada de tudo e de todos. Eu devia ter percebido os sinais. Tipo como você fazia muita questão de que eu saísse só com você ou acompanhada dos seus amigos. Os rolês com meus amigos eram raros e você parecia estar em todos os lugares menos no tempo presente. Ou como você demonstrava o quanto ficava contrariada quando eu saía com os meus amigos ou fazia em alguma coisa sem a minha presença. Eu achava que era besteira. Coisa da minha cabeça.

Mas lentamente, eu via como eu lentamente estava me tornando no seu fantoche de príncipe encantado. Sem perceber (ou até mesmo sabendo do que fazia, não sei), você tentava me moldar pra ser quem você queria que eu fosse. Antes fosse indicações de séries ou de filmes pra acompanhar e conversarmos juntos. Você cobrava com muita ênfase que eu fosse isso ou aquilo outro. Que deixasse de usar determinada rede social porque eu estava passando tempo demais nela. Ou sugeria que eu devia me afastar de determinada pessoa. Até de determinado grupo de amigos. Porque todo mundo soava como uma ameaça em potencial, alguém que iria me roubar de você a qualquer instante. Logo, tudo o que você mais queria era que eu estivesse não só à sua disposição mas ao seu alcance. O namoradinho bonitinho que estava ali o tempo todo contigo.

Em algum momento eu percebi que isso tudo estava passando dos limites. Eu me sentia incomodado mas não sabia como te abordava pra me impor e dizer que não estava satisfeito com as coisas. Ao mesmo tempo em que o seu amor me sufocava, eu precisava dele. Precisava de afirmação e da sua companhia. Mas, no fundo, era só o comodismo e a conveniência. Ter uma conversa séria, ou até mesmo terminar, na minha cabeça soaria mais difícil do que tentar resolver tudo na conversa, na razoabilidade e com maturidade. A sua paixão sufocante era ao mesmo tempo a minha salvação e a minha ruína.

Quando estava tudo indo de mal a pior no nosso relacionamento, eu fui percebendo que você estava com todos os sinais de depressão. Tentei te ajudar mostrando o quanto você precisava de ajuda, que não tinha nenhum problema em ter qualquer condição psicológica e cuidar de si era o primeiro passo pra ficar bem de verdade. Você me chamou de louco, assim como os seus pais e seus amigos que te diziam o mesmo. Éramos supostos conspiracionistas no mesmo plano. Não dá pra ajudar ninguém que não quer ser ajudado.

Nossos últimos meses juntos se passaram como um filme de cinema de antigamente. Onde de um rolo pro outro a tela fica em branco, esperando a máquina ligar com a cena seguinte para o deleite dos espectadores. Eu não lembro direito dos nossos últimos momentos. O que me lembro eram das brigas constantes, da falta de assunto e de como tudo estava indo por água abaixo. E de você ligando dizendo que não dava mais e que era melhor a gente terminar, me fazendo chorar copiosamente dentro no carro no estacionamento do escritório. Mas, no fundo, eu sabia que esse momento viria mais cedo ou mais tarde. Era inevitável. A gente não dava certo como namorados.

Anos se passaram e eu estou seguindo a minha vida, assim como você está seguindo a sua. Lembrar dessa história não me traz rancor, arrependimento nem raiva. Quando estávamos juntos e bem, era muito legal e lindo. Vivemos ótimas coisas juntos. Mas quando não dávamos certo, era o caos completo. Errei com você e você comigo. Isso ficou no passado e não me pertence mais. O que ficou é um amargo. Um amargo que ainda não saiu da minha boca e que insiste em incomodar. Ainda tenho nóias que me dizem que nunca vão me amar romanticamente de novo. Que eu tenho que policiar o que eu posto e manifesto nas redes sociais porque algo ou alguém vai achar ruim. Ou de que eu tenho que agradar a todo mundo pra ficar bem, o mocinho comportadinho que todo mundo acha engraçadinho. E coisas do tipo. A pressão, o aperto e a constante sensação de ser vigiado, aparado e transformado a todo o momento deixou chagas muito profundas. Eu me tornei uma pessoa sem alma, sem personalidade, sem característica. O completo oposto de quem eu realmente sou.

Com um pouco mais de maturidade, vivência e terapia, estou bem. Estou aprendendo a voar sozinho de novo e bem. Eu finalmente entendi o que é um relacionamento nocivo e tóxico, além de como saber que alguém pode vir com comportamentos nocivos pra cima de mim. E principalmente que eu jamais quero viver algo do tipo de novo.

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Matheus

Desde 1995 falando coisas que só fazem sentido na minha cabeça. Quando tem palavras demais dentro dela, reorganizo elas na minha prosa. Às vezes dá certo.