Do que você tem medo?

Matheus
7 min readSep 9, 2020

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Ratos, cobras, aranhas? Indiferente. Vou pro meu caminho e os bichos seguem os deles. Altura? Nem um pouco. Já viajei de avião pra tudo quanto é lado. Claustrofobia? Não. Nictofobia? Também não. Nada de palhaços, multidões ou sangue. Nada disso me desperta pânico, desespero ou aflição.

O meu medo mesmo é de esquecer.

Sim. Esquecer. Estranho né? Nem a morte me traz essa sensação horrível. Já a aceitei como parte natural do ciclo da vida, sei que eventualmente ela vai vir me dar um abraço apertado e nunca mais me soltar. Isso é o que me dá ânimo pra poder continuar vivendo. Agora pensar que algo pode me acontecer a ponto de que eu perca as minhas memórias…isso traz a minha pior das ansiedades de volta.

Mas pra ser justo, não é completamente qualquer memória. Tem umas que pra mim não fazem a mínima diferença e eu até apagaria com o clique de um botão se fosse possível. Eu tô falando de memórias queridas e que fazem a diferença na minha vida. Momentos que estão tão colados na minha essência que eu tenho sérias dúvidas se eu seria o mesmo sem elas. Envoltas no cerne da alma. Coisa que eu determinei um valor tão grande que nem o disco mais raro da minha coleção ou a pepita de ouro do tamanho de um prédio poderiam pagar o que elas valem pra mim.

Acessar essas memórias são como entrar numa cinemateca no meu cérebro. Tem de tudo! Família, amigos, desafetos, traumas, felicidades, tristezas, tocos, raivas e afins. Tem uma seção só com as coisas mais rotineiras e que estão em replay no subconsciente há tanto tempo que já devem ter vários furos nos rolos de filme. Apesar disso, a imagem continua cristalina. Tem também aqueles momentos que são como flashes: instantâneos, desconexos, borrados, que provavelmente significam ou significaram alguma coisa e que por isso estão ali ainda. Por fim, tem a seção dessas tais memórias intocáveis, que eu jamais poderia me desfazer ou simplesmente perderia a minha existência por completo. São compostas de situações onde eu me senti completamente vivo. Onde eu atingi toda a amplitude do meu ser. Pela maior das fúrias ou da mais genuína das felicidades, e por tudo o que há dentro desse espectro de sentimentos. Onde eu pude encontrar clareza, pertencimento e a mais genuína sensação de que viver fazia, afinal de contas, sentido.

A maioria dessas lembranças são sobre você, naturalmente.

Claro que a analogia da cinemateca na cabeça é apenas pra que faça mais sentido a maçaroca de neurônios que forma meu cérebro e os mistérios envolvidos que fazem com que as minhas memórias do subconsciente sejam algo palpável e compreensível. Não existe mesmo um ambiente desse dentro da minha cabeça. Você sabe disso. Mas, se de fato ela existisse, teria uma seção só sua. Você mudou tanto a minha vida, das mais diferentes formas, que não tem como não te colocar em um patamar diferente. É você, oras. Você.

Me lembro daquela vez que estávamos em casa. Um final de semana qualquer. Nosso apartamento pequeno, mas que conquistamos juntos com muita abnegação, suor e correria. Você estava desanimada com algo. Provavelmente alguma meta do trabalho que ainda seguia pendente, uma planilha, algo assim. Te ver toda brocoxô doía um pouco. Você era como um raio de sol às cinco da tarde, pulsante, enérgica, vibrante. Te ver pra baixo era simplesmente injusto com a pessoa que sei que você é. E do nada eu tirei uma forma de te arrancar um sorriso. Eu fui até o toca discos, coloquei uma coletânea do ABBA. Apertei o play e coloquei em uma faixa em específico. Me virei até você e te estendi a mão. Você demorou a me notar, estava distraída. Quando seu olhar encontrou no meu, eu soltei a primeira coisa que veio na minha cabeça:

“Se amar ABBA demais é um crime, liga pro delegado vir me prender. Me concede essa dança?”

No momento que terminei a frase, Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After Midnight) estourou nas caixas de som. E lá veio você. Meio metro de sorriso se abriu no seu rosto. E mal me importa se era forçado ou não. Conseguira. Você me chamou de idiota e começamos a dançar da forma mais desengonçada possível, mas não precisávamos de muito. Era só a diversão de estar sendo conduzido pelas harmonias vocais da Agetha e Anni-Frid. Dançamos, dançamos, dançamos. Caímos exaustos, dando gargalhadas. Teu olhar se encontrou no meu e vi, nas entrelinhas da sua íris um “obrigado” tão genuíno que nem se você dissesse da forma mais sincera possível teria tanto significado.

Me lembro também da única vez em que brigamos feio. Já nos desentendemos, claro, mas nunca a ponto de não nos deixarmos de nos falar ou pensar que tinha tudo acabado. As contas estavam apertadas, e estavamos discutindo sobre o que fazer para acertar os gastos. Corte daqui, corte dali, e acabamos chegando em nossos hobbies, e meio que acusamos um ao outro e os nossos gostos particulares de serem o motivo de estarmos gastando tanto dinheiro. Daí pronto. Eu era descontrolado e você fútil. O “vai se foder” foi uníssono e no ápice da cabeça quente você disse que se era pra ser assim era melhor voltar pra casa dos pais do que ficar com um filho da puta arrogante e presunçoso como eu.

Eu realmente considerei terminar tudo mesmo. E pelo tom da sua ofensa, você estava completamente decidida. A gente já era tão diferente em tantas coisas, e tinhamos em nossos hobbies a forma de nos reencontrarmos em nosso mundinho e nossa essência. Não respeitar as coisas que eu gosto seria não ter o mínimo de empatia e respeito a quem eu sou e o que me constitui. O peso das suas palavras doeu mais do que um gancho de um pugilista bem treinado. Fiquei noites sem dormir, o apetite diminuiu , a improdutividade reinou no escritório. Éramos estranhos no mesmo lar. Não nos falávamos e não íamos falar até que um assumisse a culpa. Até que ponderei e pensei se valia a pena fazer um sacrifício. Antes mesmo de chegar na resposta, ela veio até mim. Na forma de uma xícara de chá, mãos trêmulas e olhos meio inchados de choro. Você sabe ser intransigente e dura com as palavras, mas eu sabia do tamanho do seu sentimento por mim. Provavelmente se arrependera desde o momento em que me disse aquilo mas não sabia como vir até mim. Antes mesmo de dizer alguma coisa, você se desatou em lágrimas. Quase tomei um banho de chá. Eu te dei um abraço apertado e não aguentei. Chorei também. A gente não disse nada, mas eu sentia que estava tudo bem. Temos uma coisa de demonstrar mais com gestos do que palavras, então nada precisava ser dito ali. Não tínhamos terminado coisa nenhuma. Até tomei o seu chá depois. Odeio chá. Mas o seu eu gosto.

Ah! Também lembro daquela vez que fizemos nossa primeira viagem internacional juntos. Lima. Era nosso sonho conhecer Machu Picchu! Nós planejamos para passar o carnaval por lá e acabou sendo a mais perfeita das viagens imperfeitas. Primeiro que quando chegamos descobrimos que por algum erro do sistema a nossa reserva do hotel não tinha sido efetivada. Passamos o primeiro dia quase que inteiro quase que caçando um lugar pra ficar. Quando encontramos nossa hospedagem o cansaço da viagem bateu e nos rendeu uma ótima noite de sono, embalados com uma chuvinha gostosa lá fora. No dia seguinte, vimos que a chuva engrossou e permaneceu. No dia depois também. E acabamos descobrindo da pior forma possível que fevereiro é um dos meses mais chuvosos no Peru, do tipo de época em que as ruas se alagam e os telhados vão abaixo.

Quando a chuva dava uma trégua conseguimos visitar alguns museus, comer ceviches e explorar os tesouros escondidos da cidade. Mas grande parte do tempo passamos no hotel, enrolados nas cobertas e vendo filmes em que não entendíamos muita coisa por conta do nosso espanhol vergonhoso. E a cereja do bolo? Nosso passeio até Machu Picchu foi cancelado, porque a chuva era tamanha que os ônibus não conseguiam ir e tampouco vir. Ficamos com um gosto meio amargo na boca, sem dúvida. Mas eu não trocaria nem um segundo daquela viagem, e acho que você também diria o mesmo. Acabei descobrindo que, mesmo com as infelicidades e contratempos, nada superava o fato de que estava com você ali comigo. E estando contigo, todo passeio valia a pena. Era o que dava estar junto com a minha melhor amiga, não podia ser diferente.

Tem várias outras coisas que eu poderia lembrar e puxar dos arquivos da minha cabeça. Quando fui demitido e você me consolou por dias. Quando a nossa filha nasceu. Quando tivemos nosso primeiro encontro. Aquelas reuniões de família, os passeios pelo lago. Nossas aventuras inesperadas, as suas invenções de drinks. E tantas outras coisas que ainda estão guardadas no meu subconsciente esperando serem processadas para então irem àquela cinemateca que falei ali antes.

Você é tão parte de mim que te esquecer é inviável. Não dá, é inconcebível. Não tem espaço em qualquer possibilidade plausível. Seria desistir de mim e da melhor história que já vivenciei. Que vivencio, aliás. Você ainda está aqui comigo, e a gente tem tantas memórias a criar juntos. É até besteira ficar pensando em medo. Meu medo fica em controle quando estou com você. Me sinto corajoso, capaz e confiante. O importante é o aqui e o agora.

Mas, ao mesmo tempo, penso na aleatoriedade da vida e como ela é capaz de fazer com que fiquemos de calças arreadas num piscar de olhos. Se algum dia algo acontecer comigo, ou com nós, eu só te peço uma coisa.

Não me deixe esquecer. No que depender de mim, nunca irei.

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Matheus

Desde 1995 falando coisas que só fazem sentido na minha cabeça. Quando tem palavras demais dentro dela, reorganizo elas na minha prosa. Às vezes dá certo.